sábado, 13 de junho de 2015

Nemuritor

Reviramo-nos sob nossos túmulos.
Dissipados, meus pensamentos vagueiam sem ter paz...
Tua sedução aniquilara-me outrora.
Eis que renasço então!
Relembro:
Viajávamos na névoa da noite;
Sob sóis ardentes...
Entre feitiços sutis, entre miragens,
Nossa avidez e danação! Insaciáveis,
marchávamos!

Fomos como deuses perambulando entre os porcos:
Derramamos nosso veneno na superfície do mundo,
Avançamos com duras botas de ferro, a esmagar o solo.

Os ídolos, destronados
Sob sóis ardentes...
Entre feitiços sutis e entre miragens,
...

O banquete servido na sala vazia,
À espera de quem nunca vai voltar...
Sob o Universo imenso, submergimos.

Em tempos ainda mais antigos
eu teria espalhado a tempestade pelo mundo inteiro.
Tivesse feito subir os vapores mortais do ventre da Terra:
dissera aos mortos que invocassem seus vivos,
que lhes devolvessem o nada que perderam
e de que não se lembram mais.
Chorei cada nascimento e,
incapaz de tanto terror,
escolhi putrefar junto à gente ordinária
que viveu e que morreu.

Dei aos bichos minhas carnes,
matei e morri.
Fiz-me bruto e ensinei aos melhores homens
as mais detestáveis carnificinas.

E hoje, imitando dos mortais a morte,
nesta fria sepultura em que prometi ser-lhes igual,
estremeço consciente de minha própria lucidez.

Rogo-te então:
Guarda por favor o teu chamado
sob a poeira e sob o vento!
Deixa-me desvanecer
com os corpos que deitei sob a terra,
ainda que esta terra não me queira engolir. 

Perdoa-me, Eternidade!
Irmã traída do imortal que te renegou,
Sob sóis ardentes...
Entre feitiços sutis! entre miragens!


(Thiago Nelsis)


quinta-feira, 11 de junho de 2015

Absurdo II

Já há algum tempo escrever se tornou penoso,
como um pensamento que traz consigo um cansaço profundo,
um cansaço diferente, incapacitante,
uma espécie de cansaço que pesa nos ossos e na alma.

Quase toda vez que vislumbro uma ideia,
preciso deitar-me de imediato,
espantar dos pensamentos a inspiração que ainda não nasceu.
No meu autoexílio eu sou em parte o visitante inconveniente
que não sai da porta,
e sou em parte o morador que,
encurralado no próprio silêncio,
tenta convencer a ir embora a visita – porque ali ninguém se encontra.

Escrever é mais invasivo do que pensar,
e neste momento invado minha própria frivolidade
ao tentar externar a inexpressão em que tenho chafurdado.
Sou agora a mentira que é achar que é literatura
o amontoado de vazio que reuni fora de mim,
e sou também (mais que isso) a mentira
que escuta o som das teclas que bato a esmo,
numa tentativa patética de transpor minha própria clausura...

Estou me investigando às cegas e sem tato,
cuspindo qualquer impropério para tentar fazer findar a busca.
No labirinto do pensamento, atiro joias falsas a mim mesmo
e me contento em encontrá-las, como se valessem a Verdade!
Simplifico tudo e escondo-me de mim na rasura da folha,
no parágrafo que abandonei e não vou reler.
Sepulto a última verdade na correção ortográfica...
quando apago o último erro, que é expressar-se.

Ah, se as palavras tivessem qualquer coisa a ver com comunicação humana!
Em vez disso afogam-nos num mar de frases instrutivas,
pragmáticas e detestavelmente compreensíveis,
porque a linguagem é o coveiro da alma.

Refugio-me de mim na solidão do tempo que,
já não passando, eu ainda tento desacelerar.
Perpetuo-me no vazio da música
que escuto repetidamente para negar que estarei,
no próximo instante,
tão mais deslocado em relação a mim
do que estive em minha vida inteira.

Imortalizo-me no santuário de desdém
que são as paredes de que me cerco sem abrir portas nem janelas.
Na minha autocondenação tenho como Satã o ponteiro das horas;
como Tridente o ponteiro dos minutos;
e como Fogo Eterno o ponteiro dos segundos
– fiz de cada hora que passa a minha danação perpétua,
com que sou perfeitamente complacente.

Tenho como Pecados Capitais a falta de luxúria pela vida,
a ausência de ira contra meu destino,
nenhuma avareza em relação à ideia de Salvação.
Sou ao menos preguiçoso, mas não possuo nenhum orgulho!

Perdi-me no Abismo por ter dado a outra face.

Mas sou ainda o louco em seu castelo de delírio,
o mártir que derrama seu sangue pela causa inútil.
E ao som da tecla que bate,
da música que repete,
do relógio – o maldito relógio – que tiquetaqueia,
antes do terror da ideia abandonada,
expulsarei a lanterna que acendi,
já consciente de ter visto o desarranjo que ocultei
entre as palavras que não quis dizer.


(Thiago Nelsis)